A melhor forma de conhecer suas personagens

A carta para o futuro é uma estratégia de escrita que uso para conhecer minhas personagens. Antes de fazer um plot detalhado, coloco cada personagem principal escrevendo para si mesma no momento exato que a história vai começar. Com isso, eu passo a conhecer não só os desejos e medos dela, mas também a forma como ela se comunica e se relaciona com as outras personagens. Por ser algo que escrevo antes de escrever a história, algumas coisas podem sair um pouco diferentes no livro.

Se você abomina qualquer tipo de spoiler, recomendo que leia Depois da Última Página antes de ler esses exemplos.

Carta para o futuro - Penélope

Eu não lembro onde eu vi sobre esse exercício, mas como estou em casa morrendo de tédio, não custa nada tentar. Socorro, que jeito de começar uma carta. Vou começar de novo.

Oi, Penny do futuro! Espero que as coisas estejam bem por aí. Meu Deus, o o que tava ruim acabou de ficar pior. Acho que isso foi a coisa mais ridícula que eu já escrevi, mas vamos fingir costume. Bora tentar uma última vez.

Oi, Penny! Como você está? Espero que bem. Decidi escrever pra você por vários motivos, mas o maior deles é o tédio por aqui. Não sei como está a sua vida, mas ficar em casa sexta à noite não é bem algo com o qual estou acostumada. Sei lá, sempre achei que a vida acontece lá fora, não aqui no quarto. Bem, até tem momentos onde ela pode acontecer em um quarto, mas nunca quando você está sozinha.

Talvez você estranhe isso, afinal, você me conhece muito bem, já que você já foi eu um dia… Não sei se você se lembra, mas as coisas depois do ensino médio não seguiram exatamente o que eu tava pensando. Eu não fui pra faculdade (e espero que você também não tenha ido!), desperdiçar meu tempo sentada atrás de uma mesa ouvindo pessoas dizendo como eu devo viver ou me comportar não é o que quero pra minha vida. Você sabe muito bem o inferno que a mãe fez, mas mesmo com ela achando que eu sou um desperdício de oxigênio, não cedi e nunca vou ceder. Não vou desperdiçar os melhores anos da minha vida aprendendo a fazer um trabalho entediante.

Mas tô dando muita volta, socorro. O que eu quero dizer é: não ir pra faculdade teve um impacto que eu não imaginava. Meus amigos todos foram. Isso pode parecer nada demais, mas acabou mudando tudo. Eles agora têm as festas e amigos deles. Falam sobre coisas e acontecimentos que eu não conheço. Acabei sendo excluída por alguns e, de outros, eu mesma pulei fora. Não tava rolando. Eu tentei, você sabe muito bem, mas não dava mesmo.

Moral da história: não tenho mais amigos e estou sozinha.

Fui reler o que eu escrevi e estou rindo. Se o Diogo ou o Yun vissem essa carta me chamariam de drama queen. Ok, eu sou um pouco dramática mesmo. Tá, às vezes sou muito dramática, mas esse não é o ponto! O que quero dizer é que perdi muitos amigos em pouco tempo e não sei bem o que fazer.

Assim, algumas coisas boas aconteceram também. Minha amizade com o Yun está melhor do que nunca. Ele é muito compreensivo e sempre gosto das nossas conversas. Como ele mora perto da livraria, fica bem tranquilo de a gente se encontrar. Muitas vezes a gente almoça juntos, o que é ótimo, pois ajuda a preencher um pouco desse vazio que sinto. O Diogo fica me enchendo, diz que é questão de tempo para eu me apaixonar por ele. Você sabe como nosso irmão é. Espero que você não precise mais lidar com essa chatice.

Assim, no início da nossa amizade eu até tinha um crush nele, mas passou rápido. Yun é bonito, mas não sei. Com o tempo eu acho que fui alimentando mais a parte de amizade, sabe? Por que é tão difícil pra a sociedade aceitar que uma mulher pode ser amigo de um cara sem querer ir pra cama com ele? Meu Deus, por que estou explicando isso? Você sabe tão bem quanto eu sobre essas coisas.

Acho que estou entendendo o objetivo desse exercício. Não é só mandar uma carta para mim mesma no futuro, mas também desabafar e tirar algumas coisas do peito. É, até que tá funcionando. Deixa eu continuar então.

Como eu tava dizendo, até que algumas coisas boas aconteceram. Tem uma menina que eu comecei a conversar esses dias que é bem bonita. Tá, deixa eu ser sincera, ela é muito linda, muito mesmo. É engraçado, até hoje eu nunca tinha achado uma menina tão bonita quanto ela. A Carol é um pouco mais alta que eu, é gorda e tem um cabelo na altura dos ombros. A boca dela é bem definida e tem lábios cheios que me dá uma vontade muito grande de beijar.

Meu Deus, eu nunca tinha admitido nada disso nem em voz alta, quanto mais escrito. Mas é a verdade. Eu tenho muita vontade de ficar com ela. Não sei se um dia vai rolar alguma coisa. Eu já comentei que sou bi, mas ela não disse nada, então não faço ideia. Será que devo perguntar? Tenho medo de ser invasiva. Aaaaaah! É muito ruim não saber o que as pessoas são! A vida seria tão mais fácil se tivesse como a gente só olhar pra pessoa e saber se ela é do vale ou não. Será que isso saiu preconceituoso? Ah, estou escrevendo pra mim mesma então tá de boas.

Se bem que… agora fiquei pensando numa coisa que li. Foi de um livro sobre budismo. Por falar nisso, você continua estudando o assunto? Espero que sim, é algo que me traz um conforto muito grande. Mas lá vou eu dando voltas de novo. Eu dizia que li algo interessante. Era algo do tipo: o eu de agora não tem nenhuma ligação com o eu do passado ou do futuro. Louco isso, não? Lá dizia que somos pessoas completamente diferentes. Isso faz um pouco de sentido, eu acho. Tipo, a gente muda muito com o tempo, né? Eu não gosto mais de Justin Bieber ou Selena, por exemplo. E eu era muito viciada neles até os quinze anos. Hoje estou mais na vibe Taylor e Sheeran. E você? O que mais tem curtido? É claro que essa transformação toda vai muito além da música. As coisas que eu leio são bem diferentes das que eu lia na adolescência. Lembro de uma vez que li em algum lugar que até as nossas células eram trocadas de tempos em tempos. Espero que isso não seja fake news, seria bizarro enviar notícia falsa pro futuro, socorro.

Mas é bem interessante ver como uma doutrina milenar acertou tantas coisas sobre a existência bem antes da ciência chegar lá, né? Aproveitando, você já foi em um templo? É algo que eu quero muito fazer, mas chega de falar de budismo. Daqui a pouco você acha que vou querer virar monja.

Bom, chegou a parte chata dessa carta. Eu realmente preferia não falar sobre isso, mas bem, não tem como ignorar.

Nossa família.

Ai ai, por onde começar? Minha relação com o Diogo deu uma melhorada. Assim, tá longe de ser perfeita, mas a gente tá indo. De vez em quando ele aparece aqui no quarto pra ver como eu tô e conversar sobre algo aleatório. Apesar da diferença de idade, ele até que se esforça bastante. Ele sempre teve esse jeitão de querer cuidar da gente depois que, bem, você sabe.

O Diogo é muito estranho, às vezes eu sinto que estou conseguindo me conectar com ele, mas aí ele solta alguma coisa hétero demais e tudo vai pro espaço. Sem contar as músicas que ele escuta. Socorro, só sertanejo e pagode. Não, não dá pra mim. Ainda assim, gosto de quando ele vem no meu quarto. Odeio ficar sozinha e ele acaba me fazendo companhia de vez em quando. Isso é bom, mas nunca admitirei pra ele.

Quanto à mãe… ah, não tenho muito o que dizer. A gente não conversa muito, você sabe como é. Ela tem as coisas dela, eu tenho as minhas. Ela me vê como um ser humano que deu errado e eu a vejo… nem sei como, pra ser sincera. Acho que também não a vejo com bons olhos. Ela trabalha muito e cozinha como ninguém, mas não sei… Apesar de toda a força que ela teve pra manter a família depois do incidente, eu não consigo ver ela como uma mulher forte. Isso é contraditório, eu sei. É que sei lá, ultimamente ela tem comentado muito sobre a época que ele ainda morava aqui, antes do abandono. Eu não sei explicar, Penny-do-futuro-que-é-e-não-é-eu. Sinto que ela está com saudades dele. Tomara que não, porque pra mim, ele está morto e enterrado e não quero ter contato com os mortos.

Sei que pesei o papo falando sobre essas coisas, mas deixa eu tentar aliviar um pouco falando do meu trabalho. Sim! Estou trabalhando com o Diogo na livraria. Não é o melhor emprego do mundo, mas até que tem suas vantagens: estou trabalhando, recebendo e ainda é com algo que faz um impacto positivo no mundo. Pra fechar, tenho meu tempo livre pra fazer minhas coisas… o que mais eu poderia querer? Ah, sem contar que ler de graça é uma das melhores coisas que já me aconteceu. Sim, é melhor que aquela vez que fiquei com o Iago no banheiro do cinema. Mas aquilo também foi muito bom.

É ruim pensar que até esse emprego é algo que deixa a mãe com raiva. Ela acha que se eu estudasse conseguiria algo melhor. Aff, ela não tá satisfeita com nada. Mas enfim, não vou falar mais sobre isso.

Ah, no mês que vem vai ter a bienal em São Paulo e estamos planejando ir. A ideia foi minha. Sinto falta de ter um gruo de amigos que eu chame pra todo lugar então cansei de ficar esperando e chamei o povo. Por enquanto vamos eu, o Diogo, o Yun e talvez a Carol. Yun ficou de olhar com a namorada dele e acho que um amigo meio idiota do meu irmão vai também. Tenho medo do que pode acontecer nessa viagem, o Henrique é hétero demais pro meu gosto.

Acho que é isso. O resto você já sabe. Saudações do passado.

Penny (a do passado).

P.S.: realmente me sinto melhor depois de escrever essa carta. Acho que farei isso com frequência. Você que me aguarde.

Carta para o futuro - Yun Liang

Não sei se você ainda será amigo da Penny quando essa carta chegar, mas tenho certeza que você vai se lembrar do quanto ela é chata quando quer e de como ela falou na minha cabeça pra eu escrever essa carta. No fim, cedi. É um exercício intelectual e de autoconhecimento interessante.

Vou assumir que você não se lembra de como as coisas estão agora, caso contrário não teria necessidade de mandar essa carta e eu estaria desperdiçando meu tempo.

Nossa, a última frase poderia muito bem ter saído da boca da minha mãe. Vamos começar por aí então. Minha vida poderia estar maravilhosa: tenho uma família que se importa comigo; dinheiro nunca foi um problema; tenho uma namorada incrível e ainda por cima tenho amizades sinceras, mesmo que poucas.

Então porque não me sinto feliz?

Bom, não é minha vontade mergulhar na minha psiquê, mas não tem como eu analisar isso se apenas explorar a superfície.

Eu nunca fui uma pessoa livre. É, sei que é uma afirmação que podemos aplicar a todas as pessoas. Se a Tina estivesse aqui ela diria que sempre estamos presos a algum tipo de algema, seja do sistema, do patriarcado ou aquelas que nós mesmos colocamos. Mas não é sobre isso que estou falando. Me refiro a algo um pouco mais prático: meus pais.

Desde a infância, eles controlam absolutamente tudo o que quero fazer. Além de selecionarem os brinquedos, programas e roupas que me davam, eles ainda começaram a inserir na minha mente a ideia de crescer e ser um advogado, um médico ou pelo menos um engenheiro. Para eles, essas pareciam ser as únicas profissões dignas de um Liang. Era óbvio que eu não seguiria esse caminho. Eu não consigo me imaginar em nenhuma delas nem que minha vida dependesse disso.

À medida que fui crescendo e eles perceberam minha resistência ao plano que tinham para mim, começaram a abrir o leque:

— Bom, não seria ruim ter um administrador. Precisamos de alguém para gerir os negócios da família.

— Já pensou ter um diplomata em casa? Viajar pelo mundo e conversar com os poderosos?

Eu realmente devo ser uma decepção para eles. Quando chegou o vestibular, fui sem medo da retaliação e me inscrevi para o curso de letras. Passei na melhor faculdade do estado, mas nem isso diminuiu a bronca que levei deles depois. Nas palavras da minha mãe:

— Você é um ingrato que não pensa na família. Um egoísta, é isso que você é.

Bom, foi difícil lidar com isso no início, mas depois de dezoito anos sendo controlado, fazer algo que eu queria trouxe uma sensação de liberdade. Eu não estava acostumado com aquela sensação. Mas queria experimentar mais e mais.

Logo no segundo período conheci a Tina e começamos a namorar. Esse foi um novo surto em casa. Veja bem, depois de perceberem que eu estava sério “nessa ideia de ser professor”, meus pais começaram a arrumar encontros pra mim com as filhas dos amigos ricos deles. Acho que eles queriam ter certeza que eu não morreria pobre, o que é idiotice, pois eu teria que ser muito irresponsável para gastar tudo o que eles têm.

Eu não tinha nada contra conhecer novas pessoas, com algumas até mantive contato depois, o problema é que todas as garotas que eles traziam eram um reflexo deles. Eu não queria aquilo para mim. Por isso conhecer Tina mudou minha vida.

A conheci em um sarau de poesia. Sim, esse ambiente de pessoas desleixadas que querem viver da arte. Em resumo, um lugar que meus pais adorariam conhecer. Ela estava lá, apresentando um poema que tinha escrito sobre a luta das mulheres nos últimos anos. Apesar de ser um poema que não tinha muita técnica, a mensagem era bem forte. Aquela foi a primeira vez que a Tina me impressionou.

Depois do evento, eu estava sentado na cantina comendo um salgado vegetariano e tomando café quando a vejo caminhando na minha direção e se sentando na minha mesa. Ela disse que me viu no sarau e começamos a conversar sobre poesia, vegetarianismo, sistemas de opressão, racismo e todos esses assuntos que “o nosso tipo” costuma conversar. Depois disso, você já sabe (não que você não soubesse o que disse antes, não sei porque me empolguei tanto). Começamos a namorar e nos damos muito bem.

Meus pais quase enfartaram. Eu esperava aquilo, mas felizmente, ainda resta uma decência de humanidade no coração deles e eles nunca maltrataram a Tina. Eles sempre falam mal dela pelas costas, mas pelo menos minha namorada não precisa ouvir as coisas que escuto. A que mais gosto é:

— Queira Deus que seu pai e eu não vivamos tanto tempo para ver vocês dois casados e passando fome.

Como não amar pais assim?

Eu não sei como as coisas estarão no futuro, mas eu sinceramente desisti de esperar que vão melhorar. Aceitei que vou ter que lidar com esse jeito doce e amoroso dos meus pais.  A minha vontade mesmo era de sumir, sabe? Mudar para um lugar afastado e passar um tempo longe de tudo e de todos. Talvez convencer a Tina a ir comigo. Essa cobrança e pressão o tempo todo desgasta demais.

Como eu disse, pelo menos tenho uma namorada e uma amiga incrível. Mês que vem vamos fazer uma viagem para a bienal de São Paulo. Espero que seja uma viagem calma e que eu possa tirar férias da minha vida por alguns dias.

É isso. Com essa “energia lá em cima”, como a Penny costuma dizer, me despeço. Espero que as coisas estejam melhores por aí ou que pelo menos você tenha aprendido a lidar melhor com tudo isso.

Até o futuro,

Yun Liang

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