Do sapiens ao auctor: a escrita como atributo humano

Vários nomes de livros escritos em cores diferentes em uma folha em branco

A comunicação é uma habilidade que transformou a vida no nosso planeta. Através de gestos e expressões corporais, os mamíferos conseguiram passar informações valiosas como, por exemplo, se havia algum predador por perto. Essa nova habilidade, que foi melhorada ao longo dos milênios, se tornou vital para a nossa sobrevivência e para o estabelecimento de uma sociedade. Sem comunicação, não tem como você avisar ao seu chefe que não poderá ir trabalhar, pois acordou com uma gripe. Sem comunicação não é possível marcar o rolê com os amigos. Não é possível nem mesmo ver o final daquela série que você tanto gosta.

E, dentre as diversas formas de se comunicar, temos a escrita. Apesar das eras evolutivas à qual presenciou, ela ainda continua com o seu objetivo inicial: passar adiante uma informação. Já parou para pensar no quão arbitrária é uma linguagem? Símbolos e formatos que tiveram origem em idiomas que hoje nem são mais praticados — como o caso do latim — ainda estão presentes na mensagem que você envia para sua mãe dizendo que vai visitá-la no fim de semana. Isso é algo que me fascina. O livro Sapiens: uma breve história da humanidade ilustra bem como a escrita teve um papel decisivo na evolução nossa como espécie.

Carl Sagan, uma das pessoas que passou por esse pálido ponto azul que eu mais admiro, disse uma vez que:

"os livros quebram a barreira do tempo, prova de que a humanidade é capaz de fazer magia.”
Carl Sagan sorrindo
Carl Sagan
Astrofísico

Pare um pouco de ler esse texto e pense nessa frase. Consegue captar o poder dela? Através da escrita, o Homo sapiens consegue escrever algo e transportar essa mensagem para um tempo no qual ele próprio não existirá. O autor morre, mas não sua ideia. Se essa fosse a única vantagem da escrita, para mim já justificaria o seu uso. Porém ainda há mais.

Muito mais.

A escrita pode ser usada para causar revoluções. Se você prestou vestibular depois de 2010 tem uma boa chance de ter ouvido falar da primavera árabe. Essa foi uma revolução que começou na Tunísia para derrubar um regime ditatorial que já estava há 24 anos no poder. A onda de protestos se espalhou por vários países, dentre eles a Líbia, Egito e Síria. E o que isso tem a ver com a escrita? Tudo. Os protestos ganharam força através do compartilhamento de informações através das redes sociais. Era a escrita ajudando a moldar a geopolítica mundial. Ok, imagino que, se você não era ume entusiasta da escrita antes de ler esse texto — o que é pouco provável, já que é um texto sobre a escrita —, talvez eu já tenha conseguido que você goste um pouquinho dela com esses exemplos. Mas ainda não acabou! Guardei o melhor para o final. Falta colocar a cereja do bolo, fechar com chave de ouro.

Para mim, a característica mais sublime da escrita, aquela que a eleva a uma posição de ser venerada, é o seu não comprometimento com a realidade. Em outras palavras, a ficção. Romancistas, poetas e poetisas, comediantes e dramaturgues estão há centenas de anos nos presenteando com as mais belas histórias — ora tristes, ora alegres — sobre dragões, princesas, bruxos e assassinos. Estão falando com uma parte nossa muito específica: a imaginação. Conseguem pegar os mesmos símbolos que podem ser usados em uma sentença em um tribunal para contar uma história de amor. Esses seres estranhos que dominam as palavras e as moldam ao seu bel-prazer são chamados escritories. Elus pegam símbolos comuns a todes e escrevem sobre uma civilização que habita Titã (a maior lua de Saturno) ou um casal apaixonado que foge no meio de uma selva de um ataque de mariposas selvagens. Com a escrita, tudo é possível. Dá para desperta amor, ódio, felicidade, tristeza e por aí vai.

E se você acha que precisa de uma história longa para despertar essas sensações, dê uma olhada nesse microconto:

"tempo. Inesperadamente inventei uma máquina do”
Alan Moore
Quadrinista
Seis palavras. Nada mais. Cada uma delas cumprindo um papel essencial para causar o efeito que o autor queria. Prefere algo mais impactante? Que tal esse outro?
"Uma vida inteira pela frente, o tiro veio por trás.”
Cintia Moskovich
Escritora

Não precisamos ler livros com mais de mil páginas para sentir a magia que a escrita traz. Óbvio, se quisermos, podemos, mas a escrita é tão linda e tem um poder tão grande de despertar sentimentos, que, com 10 palavras, a Cíntia conseguiu nos fazer sentir pena desse alguém que levou o tiro. Não sabemos nem se é uma pessoa, um cachorro ou uma barata. Não importa, o sentimento existe.

Essa é maior virtude da escrita.

Ela nos desperta e nos torna mais humanos.