Humanização das personagens em dom quixote

imagem de um campo aberto com moinhos de vento ao fundo
"Quero que comas do meu prato e bebas do copo que eu beber, porque da cavalaria andante pode se dizer o mesmo que se diz do amor: que iguala todas as coisas.”
Dom quixote a Sancho Pança
Capítulo XI do Volume 1

Poucos livros na história da humanidade foram tão influentes quanto “dom Quixote de la Mancha”. Eu não preciso explicar de modo geral qual é a trama desse clássico porque certamente você já ouviu falar. Crianças viram a peça adaptada no Chaves, no Sítio do Pica-Pau Amarelo e em diversos outros desenhos. Lemos uma versão resumida da história ainda no colégio e todos já ouvimos falar da cômica e filosófica cena dos moinhos de vento. Cervantes atingiu tamanho impacto na sociedade, que criou uma nova palavra em um idioma que não era o dele. O dicionário Houaiss define quixotesco como alguém generosamente impulsivo, sonhador, romântico, nobre, mas um pouco desligado da realidade. Talvez você nunca tenha lido a obra no original, mas gosta da música Dom Quixote dos Engenheiros do Hawaii.

Ok, mas por que essa obra fez tanto sucesso e continua impactando tanto mesmo 400 anos depois de ter sido escrita? E quais lições que podemos tirar dela, não apenas como escritories, mas como pessoas?

Vamos de história

Dom quixote é um livro do seu tempo. Isso não tem como negar. Escrito em 1606 (o primeiro volume), ele traz conflitos, costumes, pensamentos e preconceitos daquele tempo. Se você começar a leitura esperando encontrar uma história que trata homens, mulheres, brancos, negros, cristãos ou mouros (termo usado para quem era de origem árabe) da mesma forma e prega que todos são iguais, bom você vai se desapontar.

Apesar disso, em vários momentos, dom Quixote (a personagem, não a obra) mostrou estar acima dessas convenções e encarou as situações com honra e dignidade, se mostrando uma figura à frente do seu tempo. O próprio Cervantes trouxe diversas críticas na sua obra. E não dá pra falar de Dom Quixote sem falar do seu autor.

Miguel de Cervantes foi uma dessas pessoas que tiveram uma vida que por si só daria um livro. Não entrarei em muitos detalhes aqui, mas a grosso modo, ele participou de uma guerra pela Espanha contra o Império Otomano (Batalha de Lepanto) onde ele desempenhou um papel que lhe rendeu diversas recomendações. Foi nessa batalha também que ele perdeu os movimentos da mão esquerda.

pintura de Miguel de Cervantes mostrando um homem branco com um colarinho de rendas no pescoço

Ao regressar para a Espanha foi capturado e passou diversos anos em cativeiro sendo então vendido como escravo. Sua família gastou o que tinha para pagar o seu resgate e quando ele chega na Espanha, as recomendações que recebera não serviam de muita coisa, pois havia mudado o rei.

Começou a trabalhar como coletor de impostos e, depois de comprar inimizades com representantes do clero, acabou preso. Dizem que foi durante sua prisão que ele começou a escrever a história de Dom Quixote.

Uma das máximas sobre escrita é que você nunca desperdiça tempo em alguma atividade quando você não está escrevendo, pois nunca se sabe quando aquela experiência poderá aparecer na sua escrita. Em Dom Quixote, nós vemos vários elementos que fazem um paralelo com a vida de Cervantes, desde sua habilidade para descrever assuntos bélicos até seu descaso por alguns membros do clero e a ameaça que os mouros ofereciam “aos costumes cristãos”.

Enredo

Tá, eu sei que eu disse que não precisaria dizer o que acontece na história de tão conhecida que ela é, mas vou dar uma de Sancho Pança e dizer que o seguro morreu de velho e que o óbvio às vezes precisa ser dito.

Prometo que serei breve.

"Numa aldeia da Mancha, de cujo nome não quero me lembrar, não faz muito tempo vivia um fidalgo desses de lança no cabide, adarga antiga, pangaré magro e galgo corredor.”
Capítulo I do Volume 1

Assim começa um dos maiores livros já escritos. A trama em si, é bem simples: um fidalgo de cinquenta anos cansado e entediado com o fim da vida, para evitar que a melancolia o dominasse, mergulha na leitura de dezenas e dezenas de romances de cavalaria, um estilo que era muito comum na era medieval.

Acontece que Alonso Quijano, de tanto ler esses romances, teve a ideia que nenhuma outra pessoa em sã consciência teria: iria se armar cavaleiro andante e sair por aí em defesa dos indefesos e em busca da justiça. Depois de montar sua armadura, escolher seu nome e o nome do seu cavalo (Rocinante), dom Quixote escolhe a sua musa inspiradora (Dulcineia del Toboso) e deixa sua aldeia na região da Mancha em busca de aventuras.

Como era de se esperar, ele apanha muito logo no início e acaba sendo resgatado de volta ao seu vilarejo. Depois de recuperado, ele percebe o seu erro e chama Sancho Pança, seu vizinho um pouco ambicioso, para ser seu fiel escudeiro. Sancho, ao ser prometido riquezas e até mesmo o governo de uma ilha, decide se juntar a dom Quixote e saem durante a noite para que ninguém os encontre.

A partir de então, os dois vão se meter nas mais diversas aventuras e se envolver com pessoas de vários tipos e classes sociais.

Olhando rápido não parece que essa história encerra nada de extraordinário. Temos um plot simples que segue a estrutura de livros de aventuras, mais especificamente os de romance de cavalaria. Por que então tanto reboliço em cima desse livro? Bem simples: porque geralmente um bom livro não é aquele que tem um excelente plot, mas sim aquele que tem excelentes personagens.

E as personagens de Cervantes são espetaculares.

Humanização das personagens

Aqui chegamos no ponto alto da obra. Cervantes não escolhe personagens que representam fisicamente os ideais dos heróis. Quixote é magro, fraco, velho e louco. Sancho é baixo, gordo, covarde e ambicioso. Logo de partida, Cervantes coloca quem está lendo fora da zona de conforto ao se deparar com personagens que são “gente como a gente”. E ele não faz isso de forma inconsciente.

estátua de dom quixote e sancho pança

A obra foi escrita no formato de uma comédia. Não uma comédia como vemos hoje em dia onde rimos das desgraças alheias, mas sim inspirada nas comédias gregas, onde as personagens eram parecidas com a gente. Assim, ao vermos as desgraças que acontecem a elas, nos colocamos naquela posição e rimos da nossa desgraça. Hoje em dia, muitas comédias de stand up seguem esse padrão. Você ri, não da pessoa, mas pensando caramba, já aconteceu isso comigo!

Nisso, Cervantes foi brilhante. Você vê a situação daquela dupla improvável andando sem rumo em uma Espanha de mais de 4 séculos atrás e ainda percebe a semelhança com coisas da sua vida. Você olha para as decisões que Quixote tem que fazer e consegue traçar um paralelo com os conflitos atuais. É fascinante.

Outra característica que faz com que a obra sobreviva ao tempo é a profundidade das personagens. No início, você pode até achar que se tratam de personagens bidimensionais: Quixote quer espalhar justiça e ser lembrado pelos seu feitos; Sancho quer poder enquanto solta seus ditados populares. Mas na medida que o livro avança, você começa a perceber a profundidade de cada um deles. E quando assusta, está tão mergulhado neles que se esquece que eles não existem e nunca existiram.

Quixote não é o mocinho, muito menos o vilão da história. Como ele mesmo diz no final do segundo volume ao ser elogiado pela sua bondade:

"Eu não sei se sou bom, mas sei que não sou mau.”
Capítulo LXXII do Volume 2

E isso se aplica a Sancho também. Sancho tem falas racistas, misóginas e intolerantes. Ainda assim, se mostra compassivo e entrega seu próprio corpo em muitas situações para ajudar os outros.

São personagens tão bem criadas que você não consegue passar pano pras coisas que fazem, mas também não consegue odiar.

Como se já não tivesse feito o bastante, Cervantes vai além e mistura amo e servo, cavaleiro e escudeiro em vários momentos, mostrando como um influencia o outro.

"Isso eu não entendo -- replicou Sancho. -- Só entendo que, enquanto durmo, não tenho medo nem esperança, nem trabalho nem gloria. Vida longa a quem inventou o sono, capa que cobre todos os pensamentos humanos, manjar que tira a fome, água que afugenta a sede, fogo que que abranda o frio..."

" Nunca te ouvi falar tão elegantemente como agora, Sancho -- disse dom Quixote. -- Por isso penso que é verdadeiro aquele ditado que às vezes dizes: não importa a casta, mas com quem se pasta.”
Capítulo LXVIII do Volume 2

Cervantes mostra que humanizar as personagens e colocá-las além do papel social delas traz um impacto gigantesco para a obra. Não é à toa que estamos falando de Dom Quixote em pleno século XXI (e arrisco dizer que continuará viva por muitos séculos ainda). 

"Por amor às causas perdidas"

Mas por que Dom Quixote fez e ainda faz esse sucesso todo? Não pode ser apenas por causa das personagens. Pode?

Bem depende do ponto de vista. A grandiosidade da obra não reside nas aventuras que a nossa dupla vive, mas sim nos diálogos.

Yeap, pode voltar e ler de novo. Eu disse diálogos mesmo.

As aventuras são simples, nada de extraordinário, mas a forma como os dois as veem e as lições que tiram delas são recheadas de filosofia e de sentidos que muitas vezes escapam se lemos de forma rápida. Vou tentar destrinchar alguns aqui.

Dá-lhe mais camadas

Assim como os ogros e as cebolas, Sancho e Quixote apresentam várias camadas. Vou mostrar mais uma de cada um aqui além das que já falei acima.

Quixote, por ser uma pessoa de ideal nobre e sonhadora, é representado como os valores elevados do ser humano. Ele é imbuído de um alto grau de justiça e na sua cabeça, não faz sentido ver uma situação injusta e não fazer nada para ajudar. Quixote representa o espírito, a alma.

Sancho, por outro lado, é um camponês acostumado a lidar com a fome e problemas “do chamado mundo real”. Ele é a materialidade, a praticidade, o “não tenho tempo pra perder com fantasias”. Sancho representa a carne.

Tem uma aventura no primeiro volume que representa muito bem isso. Dom Quixote e Sancho Pança estão andando em um campo aberto e de repente escutam um barulho gigantesco. Ao longe, eles veem duas grandes nuvens de poeira. Na mesma hora, dom Quixote diz: são dois exércitos que irão se enfrentar. Sancho tem medo (reação racional), e fica preocupado que eles fossem capturados no meio da batalha. Dom Quixote fica ansioso em poder mostrar o poder do seu valoroso braço. Depois de alguns minutos, os “exércitos” se aproximam e Sancho vê que são dois grandes rebanhos de ovelhas. Ele diz isso a seu amo que responde que o medo está fazendo Sancho ver as coisas distorcidas do que realmente são e que os magos que perseguem o cavaleiro podem estar por detrás disso. Sancho começa a desconfiar que o seu amo pode realmente ser louco, mas não discute. Diz que não vai se arriscar a ficar ali e ter o corpo machucado (preocupação com a carne, com o material). Quixote pede para ele se afastar e (para mim essa é uma das passagens mais incríveis de toda a obra) olhando de longe, percebe qual o exército que tem menos soldados (ovelhas). É a esse que ele se junta. No seu compasso moral, não é justo que um exército menor lute contra um maior. Quixote não precisa saber das motivações de cada exército, ele já viu uma injustiça ali. Por isso ele se junta a quem está em desvantagem. Ele vai em defesa dos necessitados mesmo se colocando em grave perigo (valor e coragem, referência ao espírito).

No fim das contas, dom Quixote mata algumas ovelhas e é expulso a pedradas pelos pastores. Mas não é isso que importa. O que importa é o diálogo entre escudeiro e cavaleiro.

Quixote representa os valores em um mundo onde as pessoas não querem mais saber deles. Por isso, por onde passa, ele recebe críticas, apanha e (pior ainda!), as pessoas aproveitam de seu caráter justo para colocá-lo nas mais ridículas situações. Se você começa a ler o livro rindo de dom Quixote, você termina com raiva das pessoas que o ridicularizam. (Eu tomei uma birra do duque e da duquesa que você não tem ideia.) Cervantes faz, com isso, uma crítica gigantesca à nobreza: os poderosos que tem o poder de fazer a diferença riem da desgraça alheia e ainda se aproveitam dela.

O pior cego é aquele que não quer ver

Como se tudo isso não bastasse, Cervantes, através de suas personagens, faz uma coisa muito importante com sua obra: nos mostra aquilo que não queremos enxergar.

Hoje, é normal a gente passar em uma avenida e ver uma família morando na rua. Na nossa cabeça, vem o pensamento “triste, mas não tem nada que eu possa fazer. Isso é o descaso do governo e blablabla”. Nós continuamos nosso caminho como se nada tivesse acontecido.

Não dom Quixote de la Mancha.

Ele pararia, ajudaria, tentaria chamá-los para sua casa ou qualquer outra coisa que nós, sociedade como um todo, consideraria como loucura. Dom Quixote não fecha os olhos para o mundo, pelo contrário, ele enxerga mais do que as outras pessoas, talvez por isso seja chamado de louco.

desenho em sépia de dom quixote mostrano um homem magro sentado em um cavalo esquálido enquanto segura uma lança

Inversão no final

Caso você não tenha ainda terminado de ler essa obra incrível e não queira spoiler, recomendo que pule essa seção.

Sério, vou contar o final aqui.

Não diga que não avisei.

O último capítulo do livro me mostrou que Cervantes realmente era um gênio. Depois de ser enganado por um “amigo”, Quixote é vencido e deve retornar para Mancha e ficar lá por um ano. Seu “amigo” esperava que esse fosse tempo o suficiente para que ele fosse “curado”. Dom Quixote volta e seu retorno é muito triste. Você percebe que a cada passo, o cavaleiro andante vai se desmanchando, como se fosse escorrendo pelas estradas. Quando finalmente ele volta ao povoado, ele fica doente e desmaia. Uma febre sem nenhuma causa aparente o domina. O médico diz que não sabe o que houve, que pode ser melancolia e que era melhor chamar o padre para ele fazer o testamento.

Eis que então que ele acorda e está “curado”. Acorda como Alonso Quijada, não mais como dom Quixote. Ali ele diz que está morrendo. E nesse momento, Cervantes dá um soco na nossa cara:

"E um dos sinais que os levaram a deduzir que morria mesmo foi ter ele passado da loucura à sanidade...”
Capítulo LXXIV do Volume 2

Dom Quixote não tinha mais com o que sonhar. Seu sonho estava morto e, por isso, as pessoas ao seu redor perceberam que o fidalgo também não viveria por mais tempo.

Uma das partes que mais me emocionam (sério, estou chorando enquanto escrevo) é Sancho implorando em meio ao pranto a dom Quixote que ele se levante e que os dois saiam de novo em busca de aventuras. Mais uma vez, Cervantes foi gigante: a realidade implora ao sonho (a carne, ao espírito) que não a abandone pois não pode viver sem ele. Porém dom Quixote não existe mais, quem responde é Alonso Quijada que diz para o Sancho deixar de bobagens, pois ele precisa preparar o testamento.

Essa parte dói.

E aqui se encontra o maior ensinamento da obra. Como se diz na escrita: aqui temos a verdade que o autor quis passar. Não vale a pena viver sem sonhos.

A melhor história criada pela humanidade

Sei que soa arrogante, mas de fato Dom Quixote já recebeu premiações com esse título. Eu, que terminei de ler a história ontem, não paro de procurar materiais na internet para mergulhar mais nesse universo e decifrar as várias camadas interpretativas dessa história fantástica.

Definitivamente foi um dos livros que mais me impactou até hoje. Ele atingiu um ponto que é central na minha vida: a importância de correr atrás dos nossos sonhos.

Eu tenho certeza que dom Quixote será uma figura que me acompanhará pelo resto da minha vida. Que ele me ajude a enxergar melhor esse mundo no qual vivemos e que me empreste seu valoroso braço para me ajudar quando as coisas estiverem difíceis. Só espero que esses malditos magos que me perseguem não me façam esquecer do tanto que aprendi com o fidalgo da Mancha.

Pensando melhor, se fizerem, não tem problema. Será um prazer reler e reencontrar essa dupla.